uma tigela de vinho verde ao toque do corno

Sabia que, até e durante a década de 70, no Minho, se utilizava o corno para chamar os jornaleiros para o almoço, quando estes andavam no campo, por exemplo na vindima?

Corre o ano de 1974, no Alto Minho, mais precisamente no vale do Lima, a agricultura é do tipo familiar, maioritariamente de subsistência. A policultura predomina. Cultiva-se milho grão (para alimentar os animais e para fazer a broa) centeio, azevém, curiosidades, e não podia deixar de ser a vinha para fazer o vinho – vinho verde. A vinha é cultivada nas bordaduras dos campos, nas ramadas e sob estas semeiam-se batatas, feijão ou erva para os animais. O terreno é ocupado ao máximo. Nenhum pedaço de terra “fica de velho”. Em todas as casas, são criados animais de várias espécies, uns para a subsistência da família outros para vender na feira quinzenal da vila de Ponte de Lima ou na feira de Rio Mau. Galinhas poedeiras, frangos, porcos, ovelhas, cabras e vacas galegas fazem parte do grupo de animais domésticos da região minhota. Junto à casa de habitação pode- se observar uma ou duas colmeias, das quais retiram o mel que se consumirá durante o ano.

Nos trabalhos do campo, vizinhos e familiares entreajudam-se. Mas há trabalhos em que, por questões de tempo, esta troca de esforços não é suficiente, então, é necessário chamar jornaleiros. Chamam-se os jornaleiros para a sementeira do milho, corte e malhada do centeio, desfolhada, vindimada e colheita da azeitona.

Chegou o outono. Estação do ano caracterizada pelas colheitas, o que significa, nas casas de agricultores, de azáfama, onde tudo é aproveitado e “guardado” com muito cuidado e respeito para ultrapassarem mais um ano.

É época de vindimas. Vindima é sinónimo de convívio, de alegria pela colheita, mas também de muita canseira. E a Casa de Barreiros não foge aos costumes e à tipicidade da agricultura praticada na região. Situada no concelho de Ponte de Lima, esta casa de agricultores, chama jornaleiros para os trabalhos principais do campo, como são as vindimas. Os jornaleiros chamados são quase sempre os mesmos durante o ano: o Chico, o Tio Manel, o tio Zé, Senhor Gonçalves, o Malheiro, a Fátima e a Laurinda.

O Chico, rapaz jovem com cerca de 17 anos de idade, estatura média, corpo franzino, cabelos um pouco compridos e rebeldes de cor castanho claro, olhos verdes, nunca falha. Proveniente de uma família pobre e que ficara ainda mais pobre quando o pai, em meados da década de sessenta, fugiu a salto para França, à procura de um trabalho que garantisse melhor qualidade de vida à família, e nunca mais deu sinal de vida. Nesta época, como o pai do Chico, muitos chefes de família, para fugir à miséria em que viviam, tentaram a sorte noutros países como a França, correndo para tal o risco de serem “apanhados” pelos elementos da pide, que o governo de então colocava ao longo da fronteira. O Chico e os três irmãos eram nessa altura crianças. Ele, o mais velho, em tenra idade, entrou no mundo do trabalho sem nunca ir à escola, para ajudar a mãe a sustentar a família.

São sete horas da manhã e o Chico prepara-se para mais um dia de luta. Tudo parece calmo: o orvalho que se formou durante a noite, o sol a espreitar por entre os pinheiros e a brisa fresca e já fria, própria da época, move-o a pegar no seu casaco que o protegerá até à Casa de Barreiros onde o senhor Magalhães o espera. De chancas nos pés, chapéu de palha, tesoura em punho, escadote e cesta às costas, põe-se a caminho. A distância entre a sua casa e o local de trabalho de hoje permite-lhe matar o vício do tabaco com o “mata ratos” Kentucky, que restara do dia da vindima da Casa da Costeira. Ele sabe que o senhor Magalhães não o deixará a penar nem por este nem por outro motivo. “Mata ratos há sempre e senão houver o Joãozinho vai à venda a mando do pai” diz ele baixinho para consigo mesmo.

Quando chega ao terreiro da Casa de Barreiros, encontra já os restantes jornaleiros preparados para a vindima. Aguardam que o sol comece a “dar nas uvas”, para absorver um pouco o orvalho, enquanto lhes é servido um cálice de bagaço, da colheita anterior. São vários os campos com ramadas que têm de percorrer. As castas são variadas e estão todas misturadas ao longo dos vãos de esteios: ora dois pés de verdelho, ora um pé de morangas, três de espadeiro, quatro de borraçal… e outras mais. São vindimadas todas ao mesmo tempo, não há seleção por casta.

A vindima começa. Será preciso subir e descer o escadote várias vezes naquele dia. Abeira-se um dia em cheio: as ramadas estão a “vergar” com o peso de tantos cachos. A cesta enche-se de uvas tintas em poucos minutos. Quando a cesta fica cheia, os vindimadores passam-na à Laurinda ou à Fátima, à que estiver livre, para a esvaziar nos cestos que foram distribuídos por baixo das ramadas e que depois serão carregados para o carro das vacas.

Pouco tempo após o início, o Chico, criança que se fez adulto à força, comenta, como quem já viveu muitas vindimas:

– “Cheira a carrapato. O vinho vai render bem.”

-“Sim, este ano, parece ser de boa colheita” diz o senhor Magalhães que não deixa as palavras do Chico caírem em vão. O Senhor Magalhães acompanha sempre os homens e as mulheres. As crianças da casa seguem-nos, atrás a apanhar os bagos do chão, que acabaram de cair dos cachos já bem maduros. Tudo é aproveitado: bagos e mãos. Como diz o ditado: ‘o trabalho de criança é pouco mas quem o perde é louco’. A Laurinda controla o trabalho dos pequenos para que nenhum bago se perca. Bago a bago vão enchendo as suas cestinhas, que depois serão esvaziadas para os cestos.

A meio do tempo da manhã, faz-se uma pausa. A D. Casimira, esposa do senhor Magalhães, mulher de estatura baixa e cheiinha, de picho e brincos, como minhota que se preze, preparou, de véspera, um bacalhau frito com ovo e cozeu broa de milho, como mais ninguém nas redondezas sabe fazer. A acompanhar é servida uma tigela de vinho.

O Chico aguarda ansioso este primeiro momento de degustação, pois desde o caldo da noite anterior só bebeu uns três golos de leite, da vaca que ordenhou antes de sair de casa para deixar alimento à mãe e aos irmãos. A vaca, a Loira, não lhes pertence. Como em muitas outras casas de famílias pobres, estes animais são propriedade de senhores da aldeia com mais posses. Estes “entregam” as vacas para que as alimentem, em troca do leite por elas produzido. As crias que nascem são para o dono.

Após este breve momento de pausa e recuperadas as forças são retomados os trabalhos.

Quando os cestos ficam cheios, é preciso esvaziá-los para que se possa continuar a vindima, para aproveitar o bom tempo. Então, o carro das vacas passa por perto para se carregarem e serem levados para a adega da casa, que fica na cave, enterrada. Cesto a cesto é virado na “raladeira”. Começa-se a ouvir o líquido a cair no fundo do balseiro ainda vazio e a sentir-se o cheiro de uvas frescas acabadas de serem esmagadas.

A lida continua até à hora em que se ouve um som, fora do comum, que vem da casa. O Chico apressa-se a encher a sua cesta enquanto diz para consigo “chegou a grande hora” e desce do escadote.

Pois, o som que o Chico e as outras pessoas ouviram é o som emitido por um corno que a D. Casimira sopra, para chamar o pessoal para o almoço. O arroz pica-no-chão está a ficar pronto e não pode esperar, então é necessário apressar as pessoas, e não há chamariz melhor que o toque do corno. O almoço é momento de descanso, convívio, e para o Chico, mais do que para qualquer outro jornaleiro, de tirar a barriga de misérias. Broa, arroz pica no chão e vinho compõem a refeição.

Nada melhor que beber umas tigelas de vinho velho enquanto se trabalha para o vinho novo.

No final do dia, o Chico, para além da jorna, leva para a família um garrafão de vinho velho e broa de milho, que lhes dará para uns dias.

Rute Cruz

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